CERTAMENTE que o músico Eusébio Johane
Tamele (Zeburane), quando cruzava o bairro Bolwene, na actual cidade de
Xai-Xai, em Gaza, a caminho do seu ofício, carregando um violão, não
cogitava que estivesse a estimular o percurso de um rapaz: Roberto
Chitsondzo.
Zeburane é muitas vezes recordado como o
intérprete do folclore das suas gentes, cuja música desempenhava, tal e
qual a crónica na literatura, um papel de contador de histórias que
habitam o quotidiano do seu meio. E Roberto Chitsondzo, hoje guitarrista
e vocalista principal da banda Ghorwane, viu nele um espelho.
Idem para José Alage (Zeca Alage) e Pedro
Langa, que ao convidarem-lhe, em 1984, para integrar o agrupamento que
haviam fundado um ano antes, não imaginavam que estivessem a abrir as
portas a um jovem (na altura) com sede e directrizes claras do rumo que
pretendia seguir.
A banda criada é Ghorwane que, anos mais
tarde, o saudoso Presidente da República Samora Machel apelidaria os
seus integrantes de “Os Bons Rapazes”, isto imbuído pelas sonoridades do
ritmo tradicional muthimba que estes jovens ofereciam e pela forma
única de, através da música, contar estórias do imaginário
sócio-cultural e político moçambicano.
Pelo que se percebe na leitura do livro
“Kwiri”, recentemente lançado em Maputo por Roberto Chitsondzo, este
músico sempre apostou em seguir as trilhas da moral e do esforço para
alcançar os seus objectivos, não obstante as suas origens humildes.
Crescido entre dois campos de futebol, em
Xai-Xai, foi lá que a música gritou no seu interior. E, ao aperceber-se
da sede do jovem Roberto em querer aprender a tocar viola, o velho
André, criado da família Tarmahomed – vizinha dos Chitsondzo – no final
do dia, ensinava-o alguns acordes no seu quarto dos fundos.
Porque nada é por acaso, embora os pais
não fossem favoráveis à aposta na primeira arte – vindo de uma família
religiosa – a igreja era o refúgio de Roberto Chitsondzo, onde se
libertava sem represálias. É que as linhagens cristãs são guiadas,
muitas vezes, pelo que dissera o filósofo e teólogo africano Santo
Agostinho “Quem canta reza duas vezes”.
É neste contexto que se pode assumir que o
destino já estava escrito. O seu irmão mais velho, Salustino
Chitsondzo, levava a rapaziada para tocar violão em casa. Era tanta
provocação para um ser que já era guiado pela sua inclinação para a
música.
Fruto da “Geração 8 de Março”
ROBERTO Chitsondzo, noutras lides,
mostrava-se um prodígio. Segundo a descrição da obra, depreende-se que
se tratava de um aluno aplicado, de tal forma que antes mesmo de
completar 18 anos é convidado a servir o país.
Integrou o grupo de jovens que a 8 de
Março de 1977, num projecto de Samora Machel para cobrir o vazio que os
técnicos portugueses, das mais diversas áreas, abandonaram com a
conquista da independência, três anos antes.
“Havia uma necessidade muito forte de
preencher o vazio que o colono deixou (…) fui convidado a fazer testes
para ser professor de educação física (…) fui aprovado (…) não sabia o
que o destino me guardava, mas consenti com o impulso de ajudar o meu
país”, conta num dos depoimentos que dá no livro “Kwiri” escrito por
Cremildo Bahule.
Quis o destino, nessas regulares ironias
que acompanharam a vida do intérprete e vocalista Roberto Chitsondzo,
que fosse colocado em Mapinhane, no interior rural do distrito de
Vilankulo, na província de Inhambane.
Ao tocar num baile, num dos três dias em
que aguardava, na cidade de Inhambane, para rumar à escola em que foi
colocado, na plateia estavam sentados dois senhores, entre tanta gente.
Encantados com aquela música suportada
pela sua viola semi-acústica, foram cumprimentar o músico que afinal era
o professor que iria viajar para trabalhar no internato de Mapinhane.
Ambos se apresentaram: António Munguambe e
Tales Malate, então chefes do serviço de Educação Física e de Educação,
respectivamente. Eles “dois chefes responsáveis na colocação e
afectação de professores em Inhambane”, frisa o redactor Cremildo
Bahule.
Para não perder o jovem músico,
concordaram que deveria se ficar pela cidade mesmo e Roberto Chitsondzo
foi colocado a leccionar na Escola Secundária Emília Daússe. Estava-se
em 1980.
A mudança derradeira: Maputo é o destino
UM cristão provavelmente diria que “Deus
escreve certo por linhas tortas”, ao saber que, como designa o editor da
publicação “Kwiri: Roberto Chitsondzo”, que é uma biografia, o
“músico-professor” teve de se mudar para Maputo para cuidar da sua filha
que padecia de uma patologia que não poderia ser tratada naquele ponto
do país, pois, se quer o Hospital provincial reunia condições para
curá-la.
Na capital do país, Roberto Chitsondzo
foi colocado na Escola Secundária Josina Machel. Nessa altura já
enfrentava o peso de dividir a música – vista como profissão de pouca
dignidade – com a de professor.
Já dizia o ditado, transcrito no livro, “quem corre por gosto não se cansa”, lá foi e enfrentou o exercício.
O naipe da comunicação, na altura os
radialistas Izidine Faquirá e Luísa Menezes, estava rendidos. Até porque
ainda em Inhambane o primeiro já tinha convidado a registar em música
as suas composições.
Daí foram os primeiros registos na Rádio
Moçambique, onde se pode destacar a trilha do primeiro censo da
população até se cruzar com Pedro Langa, que o convida a integrar a sua
banda, na sequência de alguns trabalhos, onde a empatia se instalou.
No capítulo três “Ghorwane: A fonte que
alicerça a nossa comunidade”, há dois personagens que acabam ganhando
algum destaque, Zeca Alage e Pedro Langa, pela visão que ambos tinham da
música e para o grupo.
Manuel Tomé, que foi jornalista e
experimentou a música, recorda, num dos seus vários depoimentos no
livro, que “a música de Zeca Alage sempre foi frontal”, o que na sua
opinião “fez de Ghorwane um grupo de intervenção”.
Por sua vez, Pedro Langa, na pena de
Cremildo Bahule, é trazido como um mestre na forma de conceber a música e
na forma como conduzia a orquestração, o que tinha a sua confluência no
realismo musical.
“Acima de tudo, convém lembrar que o
realismo musical de Langa é um elemento do romantismo, pré-existente a
ele, que se pode encontrar em Alexandre Langa, Fany Pfumo e Zena Bacar”,
sublinha o redactor de Kwiri: Roberto Chitsondzo.
Militância política começa na adolescência
QUANDO se deu o 25 de Abril de 1974, em
Portugal, Roberto Chitsondzo pertencia à Mocidade Portuguesa. Aquele
acontecimento, conforme os relatos na sua biografia, desperta a sua
consciência política em relação ao país e foi no Partido Frelimo (Frente
de Libertação de Moçambique) que encontrou os alicerces do seu projecto
de nação independente.
“Desde jovem que participo em actividades
políticas. Menos criterioso dos factos políticos, cantei nos festejos
da independência em 1975”, explicou-se o intérprete e compositor.
Ao longo do seu percurso sempre foi
apostando na militância, aliado à música. Em 1994, para surpresa de
muitos artistas, foi convidado a integrar a candidatura da bancada do
seu partido na Assembleia da República. É eleito.
Roberto Chitsondzo interpreta que o
convite resulta do facto de o país, na ressaca da guerra de
desestabilização, a experimentar a alvorada do multipartidarismo,
precisava integrar os mais diversos segmentos sociais na construção do
Moçambique plural.
Entretanto, esta ascensão dividiu
opiniões nos corredores dos artistas, pois alguns não viam com bons
olhos esta associação. Mesmo porque vozes houve que interpretaram o
gesto como uma tentativa de silenciar um grupo interventivo, cujo
discurso sempre se apresentou crítico.
“Ele chegou até ao Parlamento pelo
conteúdo musical”, comenta Luísa Menezes, que assume não ver “nada de
anormal nisso (…) pelo contrário, o facto de ele ser músico-deputado é
um benefício para a sua carreira”.
É no mesmo diapasão que se posiciona o
antigo ministro da Juventude e Desporto, Joel Libombo, que na juventude
foi baterista do grupo Fantasmas. O ex-governante, que foi professor de
Chitsondzo, enquanto este estudava professorado, disse ter-se sentido
representado com aquela conquista.
Hortêncio Langa, que por mais de duas
décadas foi secretário-geral da Associação dos Músicos Moçambicanos,
acusa-o de “nunca” ter ido à sede para, em conjunto com os seus pares,
reunir as preocupações que a classe gostava de ver resolvidas.
“A representação dos músicos no
Parlamento deve ser o grande calcanhar de Aquiles. Eu não sou político,
nem gosto. Infelizmente, sinto que Roberto Chitsondzo está no Parlamento
como político e não como músico. É uma pena que assim seja. Esperávamos
dele deputado-músico para defender a causa dos músicos e da cultura
moçambicana”, expressou Wazimbo, vocalista principal do Grupo RM.
Para este intérprete, um dos embondeiros
do edifício música moçambicana, esta união com a política acabou
ofuscando e inibindo a criação de Roberto Chitsondzo.
O deputado-músico nas discussões sobre a Lei dos Direitos do Autor e do Mecenato
POR sua vez, Mateus Kathupa, antigo
ministro da Cultura, conta que durante o período em que respondeu pelo
pelouro “ele teve encontros comigo onde discutíamos a valorização do
papel do músico e deu sugestões, para que o Ministério da Cultura
reflectisse e estabelecesse um valor que podia ser pago ao músico pelas
suas actividades nas casas de pasto”.
A cantora Elvira Viegas, que também foi
deputada, recorda que ambos defenderam a Lei dos Direitos do Autor, que
resultou na criação da Sociedade Moçambicana de Autores (SOMAS). No
mesmo contexto participaram da Lei de Mecenato.
Conforme explicou, ao contrário do que se pensa, em função do que a media transmite,
há muito trabalho que é feito antes de se levar um assunto à plenária,
por equipas que discutem os assuntos cabendo apenas ao relator
apresentá-lo no pódio.
A polémica do novo hino nacional
QUANDO o país embrenhou para o
monopartidarismo, era necessário que se alterasse o hino nacional.
Antigamente, era o “Viva Frelimo” que exaltava os feitos deste partido
na Luta de Libertação Nacional, que culminou com a conquista da
independência nacional em 1975.
Já em 1986, Samora Machel tinha, como
descreve regularmente Mia Couto, “trancado” escritores e músicos, numa
vivenda na Matola, para que “só saíssem de lá com o novo hino”.
Estiveram lá os escritores Rui Nogar,
Albino Magia, Gulamo Khan, Calane da Silva, Mia Couto e músicos Justino
Chemane, Samuel Munguambe Júnior (Yana), José Bento Vedor e Salomão
Manhiça.
A morte repentina do saudoso presidente
fez com que o documento terminasse arquivado em gavetas por vários e
vários anos. Quis o destino que Roberto estivesse na Assembleia, quando
se debateu sobre esta questão e por ser músico acabou integrando a
comissão ad hoc responsável pela proposta. Foi relator da mesma.
Mais uma vez os seus pares olharam-no de
esguelha, pois esperavam, provavelmente, que houvesse maior participação
da classe nesse episódio da história do país, o que não aconteceu.
“Tínhamos de ser muito cautelosos nas
nossas decisões. Tínhamos de apresentar um hino que cobrisse todos os
moçambicanos”, disse Roberto Chitsondzo, reconhecendo porém, que devido à
natureza do assunto fosse normal que houvesse contradições e
divisionismos à volta do mesmo.
O arrumar das botas da política para se dedicar unicamente à música: o disco
Depois de vinte anos (1994-2014), Roberto
Chitsondzo partilha com Cremildo Bahule, que pretendia abdicar da
política para se dedicar unicamente à música. Nessa altura, já o seu
grupo estava em estúdio a gravar o último álbum “Kukavata”. O vocalista
principal tinha que se dividir, pois já ambicionava o seu trabalho a
solo.
Tendo já uma carreira longa, era
inevitável se questionar se para o seu disco levava o que já tinha feito
ou se reinventava noutras estéticas musicais. Cremildo Bahule bem
destaca que um dos questionamentos inevitáveis era se este trabalho não
seria uma extensão da sua banda.
Chitsondzo superou estas dúvidas ao,
primeiro, ir buscar as composições que foi arquivando ao longo dos anos e
a apostar em sonoridades acústicas, aliando as suas paixões pelo folque com a música tradicional moçambicana.
O redactor destaca que o músico e
intérprete acabou conferindo “uma primazia para a promoção de outros
aspectos musicais e culturais que não cabem no Ghorwane”.
Numa tentativa de explicar o que é o
ábum, Cremido Bahule escreve que “Kwiri – uma novela musical do século
XXI – traz o registo da sociedade moçambicana do seu tempo. Evidencia um
quotidiano repleto de costumes e tradições, no qual inúmeras figuras –
cantadas no disco – perpassam a narrativa musical, auxiliando o ouvinte
na recriação do contexto e do espaço onde as acções se desenvolvem”.
Está patente neste trabalho de uma
qualidade de som notável e cujos arranjos dão um toque requintado ao
trabalho que a melancolia tatuada na voz do interprete nada mais é do
que um ingrediente que associado às suas composições ricas e guitarra
formam o Roberto fora da banda.
Tendo no folclore, tanto urbano, assim
como o suburbano, em letras que mesclam línguas – uma das suas marcas
estéticas – e a recriação de poemas e prosas transformadas em música.
Acaba sendo um álbum de família, na medida em que a sua esposa e o seu
filho mais velho são chamados a dar voz e acordes em alguns temas. É,
sem dúvida, uma descoberta de outro Roberto Chitsondzo, que não se
difere muito do da banda, mas que é outo.
Com a banda editou Majurugenta (1993), Não é preciso empurrar (1994), Vana va ndota (2005) e Kukavata (2016).
Fonte: mbengamz.wordpress.com
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